Guadalajara, Jalisco, a 30 de noviembre de 2024
"Busco alguém que me escute e que troque de alma comigo": Mia Couto
Versión en portugués del discurso de recepción del Premio FIL de Literatura en Lenguas Romances 2024
Eu tinha nove anos quando o meu pai me levou a visitar um parque natural que está situado no centro de Moçambique, a duas horas da minha cidade-natal. Esse parque é atravessado por uma falha tectónica que rasga de alto a baixo o continente africano. Foi naquela viva cicatriz que vi o mundo nascer. Era manhã e a luz soltava-se do vasto rio que, atravessando a imensa savana, circulava também dentro de mim. Naquele momento eu era um invisível grão, uma ínfima gota naquele universo em flagrante nascimento. Essa ausência de tamanho não me deu medo. Foi o oposto: eu era parte de algo que não tinha fim. Lembro-me que o meu pai pousou a mão sobre o meu ombro e perguntou: gostas? Eu queria responder. Mas não tinha palavras. Faltava-me um idioma. Então, ele murmurou: meu filho, esta é a tua igreja.
Era o anúncio de um destino: não era exatamente o lugar. A dimensão quase religiosa daquele momento nascia da suspensão temporária da linguagem. Se aquele momento era uma igreja, a poesia viria a ser a minha religião. Não sou crente, disse um poeta mexicano. Não sou crente, mas converso com essa parte de mim que está aberta ao infinito. Foi isto que escreveu Octávio Paz e ele falava daquilo que eu tinha vivido. O meu pai trouxe para casa esse poeta mexicano que vinha de muito longe e que não cabia nos livros que ele eternamente folheava. Foi esse mexicano que, agora, me ajudou a encontrar o mote para esta minha intervenção. Octávio escreveu o seguinte;
Sou homem: duro pouco. Enorme é a noite.
Olho para cima: as estrelas escrevem.
Sem entender, compreendo: também eu sou caligrafia.
Neste exato instante, alguém me soletra.
O que Octávio Paz viu na grafia das estrelas é aquilo que eu busco na escrita: alguém que me escute e que troque de alma comigo. E que o faça com tal delicadeza que eu me converta nessa outra criatura que me soletra. Esse é o ofício da poesia: entregar-nos a palavra que nos faz nascer. Naquela que foi a sua última entrevista, o mexicano Carlos Fuentes disse: “Estamos a viver num mundo ao qual não conseguimos dar um nome. Se uma pessoa perguntasse a Dante: “Como você se sente ao viver na Idade Média ele perguntaria: mas o que é a Idade Média?.”
Estas palavras de Fuentes nunca foram tão actuais. Não é apenas por medo que não sabemos nomear este mundo que dizem ser nosso. Não nos falta apenas o nome. Falta um idioma para formular essa pergunta. Precisamos, como dizia Fuentes de “salvar a palavra”.
Vários foram os livros que me ajudaram a salvar a palavra. Foram chegando como marés: “O livro do desassossego”, de Fernando Pessoa. “O bebedor de Vinho de palma”, de Amos Tutuola, o “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosa e, finalmente, “Pedro Páramo” de Juan Rulfo. Todos esses livros tornavam claro o meu propósito: o que eu procurava não era exactamente uma história. Procurava uma linguagem. O que eu buscava era o idioma que existe antes de sermos gente, o que eu buscava a palavra eternamente suspensa entre o abismo e o caminho.
Uma vez mais, peço ajuda a Otávio Paz: a poesia, disse ele, é arte de ver, através das palavras, a outra face da realidade. Nestes nossos dias, a chamada realidade, tornou-se tão vazia e, ao mesmo tempo, tão insolente e tão arrogante. O nosso quotidiano tornou-se tão brutal e empobrecido que, para sermos humanos, precisamos mais do que nunca de ver essas outras faces da realidade. Porque essa encenação da realidade que nos chega por via de um ecrã luminoso não é apenas uma imagem. É um muro. Um muro que nos não deixa ver a nossa própria humanidade.
Venho de um país onde os rios e as pedras falam com as pessoas, os bichos e as árvores e partilham silêncios com os deuses. Não estou a folclorizar aquilo que é, mais do que tudo, uma sabedoria ancestral. Nessas cosmogonias não existem as fronteiras entre o vivo e o não vivo, não existem fronteiras entre sonhos e deuses que moram dentro e fora do nosso corpo. Somos humanos porque somos todos os outros. Toda a minha obra não quer senão traduzir essa mobilidade ontológica que ainda hoje habita as várias culturas moçambicanas. Essa errância existencial permite viajar entre identidades que hoje nos são apresentadas como territórios ameaçados defendidos por muralhas sagradas. Essa visitação de mundos é absolutamente vital num tempo regido pelo medo, pelo ódio, pelo direito à violência e pela legitimação da vingança.
Caros amigos
Não posso terminar sem falar da minha gratidão para com a Feira de Guadalajara, falar da minha gratidão para com o júri deste prémio. Quero agradecer não exatamente esta minha distinção, mas os motivos que encontraram invocaram para fundamentar a escolha. O júri invocou a importância do encontro com sensibilidades literárias vindas de outros continentes. Mas esse mesmo júri não faz qualquer cedência a critérios de representatividade ou de outro qualquer critério que não fosse estritamente literário. Essa sensatez enobrece este galardão e engradece o prestígio desta Feira.
Devo dizer que não estou aqui sozinho. Quero partilhar este galardão com todos os escritores do meu país. São eles que, desde há décadas, lutam para que Moçambique ganhe a visibilidade que merece. Os escritores moçambicanos, todos eles, afirmam a sua identidade plural contra a herança dos estereótipos que pesam sobre África e os africanos.
Os escritores africanos de língua portuguesa vivem um duplo afastamento: a sua geografia e a língua em que escrevem. Agradeço ao júri ter contribuído para que as vozes desses escritores possam ser conhecidas para além das suas fronteiras. Há ainda e haverá por muito tempo muitos mares a nos separar. Mas como lembra Emílio Pacheco, o vosso e nosso poeta (esse que foi premiado também nesta feira no ano em que aqui estive). O poeta dizia Este convexo mar, com os seus migratórios e enraizados costumes, este mar já serviu para fazer mil poemas.
O mesmo Pacheco nos ensinou que esse mar pode ter outros nomes: “Chamo poesia a esse lugar do encontro com a experiência alheia. Não lemos os outros: lemo-nos neles.”
O poeta mexicano tem razão: lemo-nos e escrevemo-nos uns nos outros. Somos tinta e página, boca e ouvido da multidão que nos habita. Nunca foi tão urgente a literatura como um lugar de encontros. Nunca foi tão necessário resgatar histórias que nos devolvam a nossa humanidade. Precisamos de resgatar um tempo que seja nosso e um mundo a quem saibamos dar um nome. A Feira de Guadalajara é, sem dúvida, um lugar de partilha daquilo que, em cada um de nós, é a humanidade inteira. Estou aqui, nesta festa literaria, e recordo as palavras do meu pai: este lugar, esta feira tornou-se uma das minhas igrejas.
Estive nesta mesma FIL na sua edição de 2018 (ano em que foi premiada a poetisa uruguaia Ida Vitale quem agora 101 anos). Para entrar neste país, precisei naturalmente de um visto no meu passaporte. Aquela era a minha primeira visita ao México. Uma parte de mim, porém, dizia-me que já aqui tinha estado. Parte de mim tinha nascido neste lugar. Como muitos da minha geração sou natural desse México que me chegou pelos seus livros, pelas canções, pela pintura.
A todos esses escritores, a todos estes artistas devo a minha total gratidão. Este prémio é mais deles do que meu.
Para más información contacte a:
Mariño González, coordinadora general de Prensa y Difusión, al teléfono (+52) 33 3810 0331,ext. 950